29 de outubro de 2018
Uma das bactérias mais perigosas do mundo está depositada em tubos de ensaio em um discreto laboratório, localizado às margens de Jacarepaguá, um bairro da Zona Oeste do município do Rio de Janeiro. Em uma imagem de microscópio ela parece até bastante inofensiva: minúsculos bastões vermelhos sobre uma solução azul turquesa. “São vários exemplares da micobactéria Mycobacterium tuberculosis, o agente causador da tuberculose, explica o pesquisador Jesus Pais Ramos, coordenador do Centro de Referência Professor Hélio Fraga.
Criado em 1984 pelo governo brasileiro, o Centro de Referência Professor Hélio Fraga é uma instituição nacional de referência do sistema de saúde público para tuberculose e outras pneumopatias. Além de tratar pessoas com suspeita de estarem doentes com tuberculose, também recebe amostras de micobactérias enviadas de todas as partes do Brasil. O país está entre os 30 mais atingidos pela tuberculose. Em 2017 foram registrados 86.858 casos. Pouco mais de cinco mil pessoas morreram no mesmo ano por causa da doença, segundo a OMS.
Os pacientes chegam no início da manhã. Os pacientes chegam no início da manhã, alguns deles fazem a coleta de escarro. O que escarram é colocado em recipientes e depois depositados em uma caixa de alta segurança chamada “pass-through”. Laboratoristas pegam então as amostras e levam para aparelhos especiais que farão a análise do material. O perigo se esconde nos detalhes.
“Não apenas queremos descobrir se a amostra deu resultado positivo, mas também se a pessoa está infectada com uma bactéria multirresistente ou até algo que desconhecemos”, explica Jesus, apontando para a tela do computador, onde um programa faz o sequenciamento genético molecular da bactéria, exibida com curvas coloridas sobre letras que representam os genes.
Para visitar o Laboratório do Centro de Referência em Jacarepaguá é necessário assinar um documento se comprometendo a respeitar rígidas normas. Algumas das suas áreas são protegidas por serem de nível de Biossegurança 3, reconhecidas pelo uso do símbolo de risco biológico pregado nas portas que dão acesso. “São áreas onde manipulamos microrganismos com alto potencial de infecção e só pessoas treinadas podem entrar. Elas precisam trocar as roupas por trajes de proteção, dentre outros”, explica o pesquisador especializado em biologia molecular.
O risco não é desprezível. Em 2013, a equipe de Jesus Pais Ramos descobriu um novo microrganismo que causava uma infecção pulmonar com sintomas semelhantes aos da tuberculose, mas que era a doença. “Na época identificamos uma nova linhagem que não possuía relação com as outras analisadas”, explicou. A amostra era proveniente do escarro de uma pessoa que apresentava sintomas de uma infecção pulmonar e residia no Ceará.
A micobactéria foi batizada de “Mycobacterium fragae” e seus dados foram enviados a centros de referência no Brasil e no exterior. O paciente, que até então recebia medicamentos contra a tuberculose, passou a tomar os antibióticos adequados e se curou em 18 meses.
Em uma sala no Instituto de Saúde Pública e Tropical Suíço, o professor Sébastien Gagneux recebe amostras enviadas de várias partes do Brasil, dentre outros graças à Fiocruz, a maior instituição brasileira de pesquisa em saúde pública.
“Nós temos com o Brasil um importante projeto de pesquisa na área de tuberculose. O objetivo é descobrir que linhagem de bactérias são encontradas em pacientes no Rio de Janeiro e também qual a frequência como que um doente traz em si mais de um tipo de bactéria”, explica Sébastien, acrescentando que existe a possibilidade que uma delas seja multirresistente aos medicamentos aplicados. “O maior problema hoje no mundo é a multirresistência. Em muitos países no mundo você tem variações da tuberculose que não podem mais ser curadas.”
Segundo os últimos números da OMS, o número de casos de tuberculose resistente à medicação aumentou em 2017: 558 mil pessoas desenvolveram tuberculose resistente à rifampicina, o remédio mais comum. Destes, 82% tinham tuberculose multirresistente. Globalmente, 3,5% dos novos casos de tuberculose e 18% dos casos tratados eram de indivíduos resistentes resistentes aos medicamentos de primeira linha do tratamento da tuberculose.
O acesso às amostras vindas do Brasil é fundamental para o trabalho do pesquisador suíço. Uma parte delas foi incluída no grupo de 259 linhagens da Mycobacterium tuberculosis, enviadas de todas as partes do mundo e analisadas pela sua equipe. O estudo, publicado na revista Nature Genetics em 2013, revelou a riqueza genética da bactéria e permitiu comparar a árvore evolutiva do homem e do bacilo. Assim concluíram que a tuberculose surgiu há 70.000 anos na África e que acompanha a humanidade desde o seu surgimento. “Foi quando as pessoas foram morar em cidades e a população cresceu é que potencializou a virulência da doença”, explica Sébastien.
Porém o objetivo não foi apenas descobrir a evolução da doença, mas também entender que a tuberculose se manifesta da mesma forma entre as pessoas infectadas em qualquer parte do mundo, mas que os bacilos que causam a doença são muito diferentes. O que é um fator importante na forma de combatê-la. “A maior parte das pesquisas para desenvolver medicamentos ou vacinas trabalhar com apenas uma variante da bactéria. Esse mapeamento poderá ajudar a garantir o mesmo efeito dos medicamentos em diferentes regiões do planeta.”
O projeto de pesquisa entre o Swiss TPH e a Fiocruz é co-financiado. Do Brasil, as verbas foram obtidas na Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) pelo professor Afrânio Kritski, da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Fiocruz. Na Suíça, elas vêm do Fundo Nacional Suíço da Pesquisa Científica (FNSNF), que atualmente apóia doze diferentes projetos científicos com Brasil. O financiamento permite também o intercâmbio de jovens doutorandos entre os dois países.
Tudo funcionaria muito bem, se não fosse os problemas econômicos do país parceiro. “Infelizmente estamos tendo dificuldades com o financiamento do projeto por parte do Brasil. Nós já demos a nossa parte, mas muitas vezes a contribuição brasileira demora a chegar, o que prejudica a execução do programa”, declara o professor suíço.
De fato, maior desafio enfrentado pelos pesquisadores brasileiros é a atual crise econômica. Só em 2017, o governo cortou 44% no orçamento voltado à ciência. No ano corrente o corte previsto é de 15%. “A situação é tão grave, que no ano passado 23 cientistas de diversos países, todos vencedores de prêmios Nobel nos últimos 40 anos, enviaram uma carta ao presidente Michel Temer criticando a redução nos recursos voltados à produção científica.
“Falta dinheiro para financiar os programas de cooperação ou até mesmo fazer o diagnóstico da enfermidade no estado. Estamos tendo até dificuldades de manter os jovens na pesquisa, pois falta dinheiro para as bolsas também. Os alunos emigram para outros países”, explica Afrânio, que também é coordenador da Área de Cooperação Internacional da Rede Brasileira de Pesquisa em Tuberculose.
Afrânio é também o pesquisador principal do projeto em conjunto com o professor Sébastien Gagneux, do Swiss TPH. Os dois se conheceram há muitos anos nos encontros internacionais de pesquisadores da América Latina dedicados à eliminação da tuberculose. “O Sebastian participa ativamente das discussões da Rede TB especialmente na área de filogenética, sua área, ou seja, a análise genotípica das estirpes da Mycobacterium tuberculosis“.
E uma forma de superar os problemas financeiros da pesquisa no Brasil é procurar apoio de outros países. “Graças ao projeto com a Suíça, temos acesso à uma excelente estrutura de pesquisa do professor Sébastian e sua grande expertise global da área genômica. Além disso, nossos alunos de pós-graduação enviados à Basileia têm adquirido novos conhecimentos na área de genômica”, relata Afrânio, completando que “o Brasil pode conhecer melhor o perfil das mutações das diferentes linhagens da bactéria, principalmente aquelas associadas a TB multirresistente ou de maior transmissão na comunidade, o que é importante em um país de dimensões continentais.”
Ao seu lado, outro especialista presente a um workshop da Rede TB, que ocorria paralelamente ao congresso da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical organizado no início de setembro em Recife, o médico brasileiro Draurio Barreira, gerente para tuberculose na organização internacional Unitaid, uma organização internacional de compra de medicamentos ligada à OMS e baseada em Genebra, defendeu que países ricos como a Suíça não limitem a sua ajuda apenas à cooperação científica. «Todos os países ricos como a Suíça têm uma responsabilidade social muito grande no combate à tuberculose. Ela é uma doença transmitida pela respiração. Não há vacina. Não há um método preventivo. Nenhum país está protegido”, disse.
Em mente, o médico brasileiro tinha o parque farmacêutico da Suíça – quarenta por cento das exportações do país são de produtos farmacêuticos. “Na Suíça há uma produção de muitos medicamentos do tratamento da tuberculose, mas não de drogas novas. Na verdade, duas drogas novas foram lançadas em 2012 e 2013 pelos EUA e Japão, depois de mais de 40 anos sem nenhuma droga nova chegar ao mercado”, explicou o brasileiro, que já foi coordenador do Programa Nacional de Controle da Tuberculose.
A expertise suíça em grandes laboratórios como Novartis ou Roche poderia se voltar ao combate das doenças negligenciadas. “O tratamento da tuberculose é poliquimicoterapico, ou seja, você usa até sete drogas para tratar da tuberculose resistente”, afirma, completando: “A Suíça poderia desenvolver novos medicamentos.
Fonte: Swiss Info